quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Interpretar

A porta estava entreaberta, a luz estranhamente fraca e o meu quarto invadido. Avanço cuidadosamente para não assustar o animal que pudesse lá estar, estivesse ele agressivamente deprimido. Surpreende-me o facto de ainda estar na sua viagem, o que os psicadélicos fazem... Aguardo que regresse. 
Estava sentado no parapeito da minha janela e para lá ter chegado foi-lhe exigido um grande esforço, atendendo ao modo como os meus livros estavam distribuídos assimetricamente pelo chão. Parecia estar num sofrimento tão delicioso que optei por continuar em silêncio. Alienei-me dos interrogatórios e da curiosidade sobre o acesso fácil ao meu aposento. 
A viagem termina. O seu rosto mergulha nas mãos pousadas sobre os joelhos e, em tom imperativo, suplica-me para que o interprete. Por algum motivo acreditava que seria capaz de entender o que se passava com ele, o que o atormentava. Na verdade, estava aquém da sua consciência, agora ressacada por aquilo que havia fumado no meu quarto convertido em sala de chuto. 
"Sinto-me acorrentado, completamente incapaz de respirar sozinho. Apenas esforço-me pela motivação de, um dia, poder regressar ao meu passado feliz." E chora sem pudor. Chora durante minutos, abraçando-se a mim à procura de conforto, de abrigo. Era, sem dúvida, um feto na vida. Não tinha entendido que entrou bruscamente num mundo desconhecido e, por isso, foi contra o primeiro obstáculo dissimulado pelo efeito psicotrófico das emoções. Descobriu as fragilidades de se ser um ser e agora derrete perante a chama que o queimou. Era apenas o pavio, o fumo intoxicante, as réstias indesejadas, o rejeitado, o abandonado, o ferido em combate, não fosse ele o soldado que permaneceu na frente de guerra, mesmo tendo a hipótese de fuga. Não deu tréguas às dificuldades e perdeu-se no labirinto que lhe prepararam. E agora que precisa mais dele mesmo do que em qualquer outro momento, não se encontra, não se entende. Desdobrou-se, a sobredosagem  destruiu-o e procura um mestre para o reeducar. 
Contudo, a abnegação que senti perante o seu género tentava distrair-me da irmandade da dor que nos unia. Antes de mim, estava ele. Um outro ele que me feriu como ela lhe fez. Fiquei sem palavras, também eu estava atracada num porto maltratado, confiando-me nas mãos de outrem. E foi o primeiro erro na lei da sobrevivência: nunca deposites a tua felicidade noutra pessoa.
O tempo passa. Ele permanece enternecido com a sua própria miséria, eu continuo sentada até ao momento em que será requisitada a minha palavra. 
Levanta-se, agradece e pretende ir embora. "Só precisava de um sítio para chorar, um lugar onde não fosse recriminado por ter tentado, por ter desejado e por ter perdido. "
E assim foi, enquanto eu fiquei com as sobras da sua viagem prolongada na minha. 

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Ambicionar

Gostava de fazer-te uma ode, Imaginação. Gostava que aparecesses hoje, em pensamento, e me mostrasses por onde devo seguir, o que devo escrever. O que me invade neste momento de apelo é que tudo já foi dito, já foi escrito e descrito, já foi lido e não mais passível de curiosidade.
Estou em pleno plágio, em plena angústia de aprendiz de escritora, usufruindo de um dom que tentei cativar. Cede-me o dom ideal, cede-me um talento para que lhe possa dedicar tudo, o meu esforço, o meu cansaço, a minha busca incessante.
Terão os grandes apelado à tua sensatez? Terás tu tido pena dos que sofrem de vontade de palavras e que nelas se refugiam? Dá-me um problema e eu escrevo, dá-me solidão, dá-me falta de alento para sentir revolta criativa, frustração de uma vida de escritor sentado à secretária à espera que lhe surjas.
Um dia, alguém descobrirá os textos neste caderno e mesmo assim, nunca aceder-lhes-á. É preciso sentir-se até mesmo quando se lê. Mote de uma vida enclausurada na rotina, és privilégio de alguns, és vontade de todos.
Não pertences só a génios, não sejas elitista e olha para a plebe representada por mim que tenta impressionar-te. Não quero dons magníficos que não posso acompanhar, dá-me um que permita tornar a prosa tão mais bela que, como eu, é tão comum e infeliz. Une as duas e, assim, tentaremos deixar-te orgulhosa de nós e virás que compensamos o teu mundo de arte e criatividade. Não anseio mais nada senão a escrita em prosa! E a ti, cada palavra desenhada eu te dedicarei. Mas, imploro-te, não deixes os meus textos definharem. Mantém-nos imortais e impunes ao passar do tempo, ao sentimento de nostalgia vagabunda. Não me deixes que pense neles como uma prova de um desatino, deixa-me vê-los como um elogio às minhas quase capacidades. Deixa-me escrever, por favor!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Vaguear

Assim seja. Casaco comprido, berma da estrada. Apático. Avistei-te de relance, quiçá as meras coincidências ocorram na vida dos que as menosprezam, dos que se limitam a desacreditar o acaso. O tempo está paralisado, o céu distante, o ambiente glaciar e tu inacessível. Não existem pontes cruzadas, não há intersecções viáveis que nos façam ansiar a atenção do outro. Continua aí, taciturno e indiferente, do outro lado da estrada.  Vou abstrair-me na necessidade de chegar até ti, na infelicidade de te ver encerrado nesse teu hemisfério tão gélido, tão atemorizante.  Divididos pelo frenesim dos veículos, pelo alcatrão que combina com o teu traje, pelas árvores desnudadas de sentimentos.  
A mina estala e parte-se. O lápis, inútil, permanece caído no chão por mera distracção de quem o investia em defesa perante um papel branco, ignorante sobre a nossa história… História essa que teve um fim, antes de se escrever “Era uma vez”. Ainda bem, assim não se perde o manuscrito para rasgos de papel esvoaçando pelo ar, humedecidos pelas lágrimas feridas de um rosto perdido.
Teci a tristeza sem nunca chegar deveras a senti-la. Temi-a antes de a possuir e regredi no tempo. Permaneci intrépida. E tu ainda não me avistaste, nem nunca o farás. O teu olhar distraído e concentrado no nada impede-te de me ver, de ver o que sou, o que pretendo, o que desejo.
Tudo o que eu sei é que, ao longe, és das coisas mais simpáticas que já vi. O teu sorriso faz o meu género, a tua postura encaixa nos meus padrões. E não a consigo esquecer. Ao invés disso desbasto a grafite do lápis para sombrear as tuas expressões no caderno … é o único modo de te tornar remanescente, agora que vais sem sequer me conheceres nem te teres apresentado.
Estás a passos de mim, estás a uma eternidade de conseguir a tua atenção e, mesmo sabendo a luta renhida que irei travar, opto por permanecer deste lado, no anoitecer do dia, no escurecer da luz, no brilho dos carros que passam rápido e que, como tu, não se apercebem de mim.